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Entrevista da magg ao antigo lide dos Diabo Vermelhos

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Para tentar perceber e responder a algumas destas preocupações, a magg foi falar com quem durante quase 30 anos esteve envolvido numa claque de futebol. Emanuel Lameira, o antigo líder dos Diabos Vermelhos (DV).

O antigo dirigente não esconde que quando o filho de 17 anos lhe diz que vai a um jogo de futebol, fica mais descansado se souber que ele não vai para uma bancada com uma claque presente. É que assim, continua, são menores as probabilidades de estar sujeito a uma carga policial injustificada. Porém, garante que o ambiente que se vive numa claque pode até ser muito semelhante ao de uma escola e, por isso, totalmente seguro para um miúdo.

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Depois de 12 anos em silêncio após a sua saída da claque devido a uma divergência de opiniões, falou sem medos sobre tudo. Até de como a má ação da polícia é uma das causas para o mau ambiente que se tem vivido no futebol nos últimos anos.

Com que idade é que entrou para os DV?
Com 11 anos, em 1987.

E o que o fez entrar?
Recordo-me de ser miúdo e ir ao futebol com o meu pai e com os amigos. Nesses jogos eu passava muito mais tempo a olhar para as bancadas do que propriamente para o que estava a acontecer em campo. Isto, claro, numa altura em que não havia cânticos organizados e a ideia passava mais por cantar e gritar pelo clube ou insultar o adversário.

Tudo o que acontecia ali captava muito mais a minha atenção, precisamente porque ao contrário do que eram alguns jogos de futebol, naquele sector específico da bancada nunca havia monotonia.

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E como é que chegou à liderança dos DV?
Não foi nada pensado. Aliás, até costumo dizer que foi um acidente. Em 1991, quando tinha 15 anos, já era chefe de núcleo de Almada que, juntamente com o núcleo dos Olivais, eram os mais numerosos e representativos da claque. Juntávamos muita gente para vir ao futebol através de cartazes espalhados em vários locais, como cafés, salões de jogos e escolas.

A adesão foi sendo cada vez mais forte até que no dia do Benfica-Arsenal, para a Taça dos Campeões Europeus, decidimos espalhar os cartazes por toda a região de Almada e cometemos a estupidez de juntar 200 pessoas.

Nunca mais parou?
Exato. Quando, em 1992, houve aquela separação que viria a dar origem aos No Name Boys, uma outra claque de apoio do Benfica, ficou toda a gente um bocado à deriva. Não havia telemóveis, internet ou serviços de conversação. Todo o pessoal de Almada que nós tínhamos conseguido juntar para jogos anteriores começou a ligar para mim para saber como é que nos iríamos organizar para jogos futuros. A liderança dos DV caiu-me no colo e foi uma espécie de “toma lá e desenrasca-te”.

E desenrascou-se?
Eu acho que sim. Nessa fase de transição ficámos sem material. Não havia bandeiras ou faixas porque os donos, ou os que não eram donos e que mesmo assim quiseram levar o material, levaram-no para a outra claque e nós ficámos com duas bandeiras. Claro que tivemos de renovar aquilo tudo e as finanças da claque foram-me entregues num simples saco de plástico que tinha entre 250 a 300 escudos — o que hoje equivale a mais ou menos 1,50€.

Foi recomeçar do zero e, na altura, algumas das despesas da claque, como os autocolantes que ajudaram a improvisar novos cartões de associado, foram pagos pela minha mãe apesar de eu já trabalhar.

E a escola?
Nunca me preencheu. Comecei a trabalhar desde muito cedo porque gostava de ter as minhas coisas e a escola nunca me completou. Nunca fui um aluno brilhante mas ia passando de ano para ano, mas ainda hoje acredito que a escola não me podia ter dado nada daquilo que eu não tenha conquistado por mim mesmo. Aquilo em que sempre acreditei é que a claque substituía a sociedade normal dos clubes. O que ali se vivia podia ser melhor ou pior quando comparado com outras claques, mas nunca era igual.”

Eram mais jovens ou adultos a entrar na claque nessa altura?
Inicialmente eram mais jovens, mas o ambiente que se foi criando convidava à entrada de mais pessoas. E chegou a um ponto em que tínhamos várias gerações num núcleo, desde avós, pais, filhos e irmãos. Houve até casais que se formaram ali.

Enquanto líder procurava transmitir valores e marcar uma posição?
Acredito que nem sempre tenha transmitido a mesma coisa, até porque as ideias de um jovem de 15 anos são muito diferentes das de um adulto. Confesso que nunca pensei muito nisso, mas as coisas saíam-me sempre por impulso. Apesar disso, tentei sempre ser o mais coerente e honesto possível com toda a gente.

Sempre acreditei também que a claque substituía a sociedade normal dos clubes. O que ali se vivia podia ser melhor ou pior quando comparado com outras claques, mas nunca era igual. Crescemos com uma união tal que aquilo ali já não era só ir ao futebol. Nós íamos aos casamentos uns dos outros, aos batizados dos filhos de outros membros e até mesmo aos funerais dos amigos dos nossos companheiros. Essa história de que o futebol é o desporto do povo já não é verdade. Já foi, mas aburguesaram a coisa, tornaram aquilo num desporto de elites e isso vê-se quando há programas televisivos com comentários acerca do que se passa à volta do futebol.”

Criou-se ali uma família?
Sim, foi uma das coisas que eu sempre quis transmitir ali dentro. Uma forma positiva de estar entre nós, mas sempre sem nos preocuparmos com o que pudessem pensar sobre isso. Vivi sempre muito bem com o que pudessem ou não pensar de mim. Comecei a ter tatuagens quando pouca gente as tinhas, usei cabelo comprido quando pouca gente usava e tive brincos quando mais ninguém tinha. Nunca me preocupei com modas ou formas de estar, e nunca fiz as coisas para agradar a terceiros.

Muitas vezes fiz coisas para os meus em que me prejudiquei pessoalmente a todos os níveis, desde adiar o dia do casamento por causa de um jogo do Benfica, ou deixar de ir ver familiares ao hospital porque estava a acompanhar o meu clube.

“As claques de futebol estão cada vez mais violentas”

A violência no futebol é um reflexo do discurso inflamável que se ouve por parte de comentadores e dirigentes desportivos?
Sem dúvida. Essa história de que o futebol é o desporto do povo já não é verdade. Já foi, mas aburguesaram a coisa, tornaram aquilo num desporto de elites e isso vê-se quando há programas televisivos com comentários acerca do que se passa à volta do futebol, onde se consegue atingir todo um baixo nível.

Quiseram tornar o futebol numa coisa que nunca foi. O futebol sempre foi 22 jogadores a jogar à bola e quem metesse mais golos na baliza adversária, ganhava. Quiseram transformar o futebol num circo de milhões para encher a barriga a meia dúzia de interessados através de leis questionáveis, como a obrigatoriedade dos lugares sentados em nome da segurança. Faz todo o sentido associar as claques à violência no futebol, e estão cada vez mais violentas.

É uma maneira de gerar mais receitas?
Sem dúvida. É para obrigar o espectador a pagar mais por um espectáculo que podia custar metade do preço, por exemplo. Os bilhetes estão mais caros porque o dinheiro que pagam aos jogadores é exorbitante e é impossível viver da maneira que se vivia antes.

Faz sentido associar as claques à violência ou é mais ruído da comunicação social?
Faz todo o sentido associar as claques à violência no futebol, e estão cada vez mais violentas. Como é que chegaram a este ponto? É fácil. Quando há 25 anos algum comentador apelava ao fim das claques, eu dizia sempre que no dia em que isso acontecesse era o dia em que a violência a sério começava. Não acabaram com as claques mas fragmentaram-nas e obrigaram-nas a ser associações legais quando algumas já o eram.

Emanuel Lameira foi líder dos Diabos Vermelhos durante 15 anos e diz que hoje já não se identifica com o futebol

Mas o que é isso de legalizar uma claque?
É uma atitude pidesca que tem como único objetivo controlar a vida dos cidadãos. Se eu sou sócio de uma claque, sou um cidadão português com cartão de cidadão e tenho um bilhete de sócio do meu clube, que história é esta de me legalizar para ter de ir a um estádio de futebol? É óbvio que aceito que as pessoas e as claques não o queiram fazer porque são liberdades conquistadas das quais ninguém deve abdicar.

Porque é que para ir a um estádio de futebol eu tenho de me identificar, dar uma ficha com o meu nome, a minha filiação, o meu local de trabalho, a minha morada e a minha profissão? Pior: porque é que tenho de entregar estes dados à polícia? Em dias de derbies, o percurso da equipa visitante é todo ele feito através de um cortejo policial. Se por algum motivo um adepto tentar fugir a esse controlo, é apanhado pela polícia, insultado, agredido e obrigado a ir para a chamada “caixa de segurança”.

“Há violência gratuita por parte da polícia”

Mas tem alguma coisa a temer?
Não, não é uma questão de ter ou não alguma coisa a esconder. A minha vida é perfeitamente transparente, mas nada me obriga a concordar com isto. E faz-me muita confusão como é que mais de 40 anos depois do 25 de abril, se continuam a abrir brechas no direito à liberdade das pessoas e ninguém questiona.

Mas essa violência surge porquê?
As claques são pau para toda a obra. São a face visível daquele adepto que vai a todo o lado, muito mais do que um adepto normal. Um membro da claque leva isso muito a sério porque sente que tem de estar sempre presente. Sendo as claques acompanhadas, guiadas, vistas e tratadas da forma que são tornam-se não só um alvo mas também um gerador de violência.

Em dias de derbies, o percurso da claque da equipa visitante é todo ele feito através de um cortejo policial. Se por algum motivo um adepto tentar fugir a esse controlo, é apanhado pela polícia, insultado, agredido e obrigado a ir para a chamada “caixa de segurança” [zona onde a claque está a circular,escoltada pelos agentes de segurança]. A polícia não concebe essa ideia de que alguém é livre de ir à rua com um cachecol do seu clube para ver um jogo no estádio do adversário.

Qual é o problema das chamadas “caixas de segurança”?
O problema é que dentro daquela caixa estão três ou cinco mil homens, mulheres e crianças que se deslocam todos para o mesmo sítio, guiados como se fossem carneiros pela polícia. Se os agentes delinearem, por exemplo, que as pessoas não podem pisar o passeio, posso garantir que caso isso aconteça a reação da polícia vai ser à bastonada. E não estamos a falar de um simples “chega para lá”. Normalmente são bastonadas dadas em sítios para aleijar à séria. Legitimou-se este tipo de violência para o pessoal da bola, faça ou não parte de uma claque. Come tudo pela mesma bitola e isso vai gerar mais violência porque ninguém gosta de ser maltratado.”

Eu vou sempre dar o exemplo que me é próximo porque fiz várias deslocações da Luz para Alvalade. A entrada no estádio do Sporting é feita através de uma escadaria íngreme e quando as filas da frente do cortejo chegam ali e têm de parar, é óbvio que as filas de trás, por não terem a capacidade de ver o que está a acontecer lá à frente, empurram os que estão à frente. É o efeito mola.

O que acontece de imediato é que os agentes da polícia se sentem na necessidade de usar todas as medidas que acharem necessárias para repor a ordem numa situação onde não existiu desordem.

Assume que houve e há violência gratuita por parte da polícia?
Claro que sim, é humanamente impossível que não existam empurrões num contexto daqueles. Só que legitimou-se este tipo de violência para o pessoal da bola, faça ou não parte de uma claque. Come tudo pela mesma bitola e isso vai gerar mais violência porque ninguém gosta de ser maltratado, especialmente por pessoas que deviam dar o exemplo devido à profissão que têm.

Mas mesmo quando há altercações nas bancadas provocadas por um ou vários adeptos, a polícia quando intervém é a distribuir bastonadas a torto e a direito em toda a gente que esteja pelo caminho até chegar ao responsável. O problema é que, quando finalmente chegam lá, já o caos se instaurou e já não sabem quem provocou aquilo tudo.

Uma claque oferece um ambiente propício para quem goste de violência?
Sem dúvida alguma. Quem goste de andar à pancada com regularidade de certeza que não vai para os escuteiros. É óbvio que para quem está de fora, pais de miúdos, por exemplo, seja difícil não tomar o todo pela parte ao ver as situações mais recentes a acontecer.”

E como é que uns pais lidam com uma criança que chegue a casa e diga que quer pertencer a uma claque? A preocupação deles é justificada?
Sim, claro que sim. Eu tenho dois filhos, um com 17 anos e uma menina com um ano e meio. O meu filho já me disse várias vezes que ia ao futebol com os amigos e, nessas situações, eu quero sempre saber para que bancada é que ele vai. Não quero parecer frustrado em relação à autoridade, mas eu fico mais descansado se o meu filho for para uma bancada onde não esteja uma claque porque assim está menos sujeito a uma carga injustificada [da polícia].

A preocupação dos pais deve ser mais com a polícia e menos com a claque em si?
Nos mais de 30 anos que eu tenho de claques de futebol, 70 a 80% das vezes em que houve problemas foi devido à má ação da polícia.

Mas é a polícia que não sabe agir ou a claque que não se sabe comportar?
A polícia não sabe agir e legitimou-se aquela ideia de que “se é da claque, pode-se bater à vontade”. Falta formação aos agentes para lidar com situações destas, ou então é só um bom treino para outras situações. Mas é óbvio que para quem está de fora, pais de miúdos, por exemplo, seja difícil não tomar o todo pela parte ao ver as situações mais recentes a acontecer. Como o ataque em Alcochete de adeptos do Sporting aos jogadores, ou até mesmo a suposta rixa de claques junto ao estádio da Luz, em 2017, da qual um adepto italiano morreu.

É normal que as pessoas julguem e apontem o dedo. Eu próprio digo que aqueles miúdos não tiveram noção do que fizeram em Alcochete e foram estragar a vida deles desnecessariamente. Há muita gente que vai odiar o que eu vou dizer, mas eu sou muito crítico daquilo que se passa no movimento atual de claques, especialmente estando estes acontecimentos tão recentes ainda muito presentes na memória.”

“Não é em nada diferente do ambiente que se vive numa escola ou numa discoteca”

Estes casos de violência também dão má imagem ao movimento?
Isso é irrelevante porque quem está por dentro não se preocupa com isso. É simplesmente um mau caminho e não é por aí que os adeptos devem fazer valer a força que têm.

Mas também não há inocentes nas claques…
Como é óbvio. Não há inocentes em nenhum dos lados da barricada.

Atualmente, Emanuel dedica-se à sua loja de streetwear e tatuagens, bem como à organização e promoção de eventos

Um dos medos de certos pais é o acesso dos jovens a um mundo de criminalidade dentro das claques. Faz sentido falar nisto?
Há criminalidade em todos os pontos da sociedade. Claro que seria hipócrita da minha parte dizer que numa claque de mil pessoas, todos eles são santos.

Mas há um cuidado de tentar proteger os mais jovens ou aconselhá-los para que não tomem caminhos errados dentro da claque?
Há muita gente que vai odiar o que eu vou dizer, mas eu sou muito crítico daquilo que se passa no movimento atual de claques, especialmente estando estes acontecimentos tão recentes ainda muito presentes na memória. Mas não lhes aponto o dedo porque sei que às vezes situações destas, de descontrolo e de tensão, acontecem. Os dirigentes dos grupos deveriam condenar a violência e tentar fazer com que os membros não se envolvessem em certas situações. Deviam adotar uma postura mais preventiva para o grupo e para os membros que o constituem.”

Aquilo que eu fiz enquanto lá estive foi sempre defender os meus contra tudo e contra todos mas sempre tentei manter o discernimento entre o que é defensável e o que não é.

Mas onde está essa linha e quem é que tem autoridade moral para a traçar?
Acho que a linha é igual para o comportamento de uma claque como para o comportamento de um qualquer amigo. Enquanto líder é importante ouvir as pessoas que são geridas e, se for preciso, explicar o porquê de certo tipo de atitudes e comportamentos não serem aceites porque simplesmente não traduzem o espírito e a mensagem do grupo.

Deviam existir representantes das claques a condenar publicamente a violência de alguns dos seus membros?
Claro que sim, os dirigentes dos grupos deveriam condenar a violência e tentar fazer com que os membros não se envolvessem em certas situações. Deviam adotar uma postura mais preventiva para o grupo e para os membros que o constituem, mas depois de as coisas acontecerem também não faz sentido virar as costas. É preciso apoiar as pessoas e ajudá-las para que não repitam o erro. Para marginalizar já há gente que chegue.

Defende a ideia de não manchar o grupo que representa?
Sim, isso devia ser ponto de honra para qualquer um de maneira a não ver o grupo ser associado a rótulos fáceis.

Mas essa ideia não é paradoxal? Disse-me que os membros de uma claque não se preocupam com o que pensam deles, mas ao mesmo tempo diz que não querem ser rotulados…
Não acredito que seja paradoxal. Como é que se rotula um grupo de seis mil sócios, por exemplo? Eles não são todos iguais e uma claque exprime a multiculturalidade e liberdade de expressão de tomar várias opções de vida através da multiplicidade dos seus membros.

Há pessoas tão díspares a nível de ideologia política, religiosa ou de estratos sociais que é muito difícil não colocar um rótulo num grupo destes e não parecer tendencioso. Quem assim o fizer não está a agir de boa fé. Por exemplo, não é justo que por uma ínfima parte de consumo de droga que possa haver numa claque, justifique automaticamente que o grupo seja todo ele rotulado como um bando de drogados.

Com toda a experiência que tem neste meio, considera que o ambiente de uma claque é seguro para um miúdo?
Sim, não é em nada diferente do ambiente que se vive numa escola ou numa discoteca. Tem o lado bom e o lado mau, como em qualquer lado e, no fundo, é uma questão de ter sorte na vida e saber fazer escolhas.

Quem vai para lá não pode achar que a pessoa que está ao lado é a última bolacha do pacote e que tudo aquilo que ele diz está certo e, por isso, deva ser encarado como uma verdade absoluta. É preciso ter cabeça, capacidade de autocrítica e perceber o que é certo e o que é errado para conseguir agir em conformidade, como tudo na vida.

Texto: Texto de Fábio Martins, fotografia de Madalena Traguil, artigo da Magg.pt

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