Foi a 30 de novembro de 2015 que a Procuradoria-Geral da República anunciou a abertura de um inquérito “para investigar os factos relacionados com a divulgação pela CMTV do registo audiovisual dos interrogatórios a arguidos do processo dos vistos gold“. Quase três anos depois, o caso vai a julgamento, com a pronúncia de três funcionárias da estação, por desobediência.
A juíza Margarida Gaspar, do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, considerou existirem indícios suficientes da prática do crime de desobediência, previsto no artigo 348º do Código Penal (por se infringir o disposto no artigo 88º do Códigigo de Processo Penal), para levar a julgamento Débora Cristiana Matos Carvalho, Tânia Alexandra Ferreira e Castro da Costa Laranjo e Mónica Alexandra Matias Palma Ribeiro, todas com carteira profissional de jornalista, como responsáveis pela publicitação dos vídeos dos interrogatórios de Manuel Macedo. Nenhum elemento da direção do canal foi constituído arguido.
A decisão de levar a julgamento a difusão dos vídeos do caso Vistos Gold é de 4 de outubro; desde 22 de outubro que o mesmo canal está a transmitir os áudios dos interrogatórios do processo do homicídio do triatleta Luís Grilo, ainda em fase de investigação.
A decisão é de 4 de outubro; desde 22 de outubro que o mesmo canal está a transmitir os áudios dos interrogatórios respeitantes ao processo do homicídio do triatleta Luís Grilo, ainda em fase de investigação.
Questionada pelo DN, a PGR informa que já existe, no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, um inquérito em relação a mais este caso, que se encontra “em investigação”, mas não respondeu às perguntas do jornal sobre a qualificação jurídico-legal que faz desta divulgação – ou seja, quais os crimes em causa no inquérito, e se resultou de uma queixa ou de iniciativa da PGR. Também a pergunta sobre se o MP pode e quer agir – nomeadamente através de uma providência cautelar ou outro procedimento judicial expedito – para impedir a continuação da transmissão dos interrogatórios ficou sem resposta.
Sobre a divulgação de gravações vídeo e áudio efetuadas no âmbito do processo Marquês – recorde-se que tanto a CMTV como a SIC as transmitiram – diz a PGR que “as investigações prosseguem, sendo, igualmente, dirigidas pelo Ministério Público do DIAP de Lisboa”.
Vídeos só para incrementar audiências
Na sua decisão sobre a divulgação dos vídeos dos interrogatórios a Miguel Macedo, a juíza Margarida Gaspar considerou não merecer qualquer credibilidade a alegação das três funcionárias da CMTV de que não tinham agido com dolo, por desconhecerem a proibição de reprodução daquelas peças processuais – os vídeos ou áudios das inquirições, que mesmo após o fim do segredo de justiça só podem ser reproduzidos com autorização dos intervenientes.
Também outra invocação exculpatória das arguidas, a de que a reprodução dos vídeos foram efetuada ao abrigo do direito de liberdade de expressão/imprensa, excluindo assim a ilicitude, não foi aceite pela magistrada. Para Margarida Gaspar, tal exercício da liberdade de expressão, no caso, não necessitaria da difusão das imagens; estas nada adiantavam em termos de informação, admitindo a juíza serem úteis apenas para incremento das audiências.
Para a juíza, o exercício da liberdade de expressão, no caso, não necessitaria da difusão das imagens dos interrogatórios; estas nada adiantavam em termos de informação, admitindo a magistrada serem úteis apenas para incremento das audiências.
Por fim, a alegação, por parte de Débora Carvalho, de que, na sua qualidade de assistente do processo dos Vistos Gold, tivera acesso às gravações e as entregara às colegas sem saber o que iam fazer com elas, pelo que solicitava que a acusação fosse arquivada no seu caso, também não foi acolhida pela magistrada. Esta estatuiu não ser credível esta explicação: Débora Carvalho deveria saber a que fim se destinavam as gravações e, caso não soubesse, teria de acautelar que não fossem usadas de modo a cometer-se o crime de desobediência. Além de que, lembrou Margarida Gaspar, os vídeos foram transmitidos pelo menos duas vezes, e Débora Carvalho nada terá feito para obviar a tal transmissão.
Difusão só com autorização de Macedo
O crime de desobediência, pelo qual vão ser julgadas as três arguidas pela difusão dos interrogatórios de Miguel Macedo, está previsto, como já referido, no artigo 348º do Código Penal. Este prevê pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias a quem desobedecer a uma ordem ou mandado legítimos.
Mesmo tendo acesso aos vídeos dos interrogatórios através da sua funcionária constituída assistente, a CMTV teria de requerer autorização quer das autoridades judiciárias quer do interveniente – no caso, Miguel Macedo — para os difundir.
No caso, a ordem diz respeito ao artigo 88º do Código de Processo Penal. Este, no número 2, estabelece que incorre em “desobediência simples” quem reproduzir “peças processuais ou documentos incorporados no processo, até à sentença de 1.ª instância, salvo se tiverem sido obtidos mediante certidão solicitada com menção do fim a que se destina, ou se para tal tiver havido autorização expressa da autoridade judiciária que presidir à fase do processo no momento da publicação”. No mesmo crime incorre quem transmitir ou registar imagens ou tomadas de som “relativas à prática de qualquer acto processual, nomeadamente da audiência, salvo se a autoridade judiciária referida na alínea anterior, por despacho, a autorizar”, sendo que “não pode, porém, ser autorizada a transmissão ou registo de imagens ou tomada de som relativas a pessoa que a tal se opuser.”
Ou seja, mesmo tendo acesso aos vídeos dos interrogatórios através da sua funcionária constituída assistente, a CMTV teria de requerer autorização quer das autoridades judiciárias quer do interveniente – no caso, Miguel Macedo — para os difundir.
MP não pode agir como no caso Supernanny?
Curiosamente, a queixa relativa à difusão, também pela CMTV, de vídeos dos interrogatórios de outro arguido do processo Vistos Gold, o ex diretor do SEF Jarmela Palos, foi arquivada.
Como o DN noticiou em abril, o DIAP, apesar de reconhecer que se estava perante um crime e considerar que o exercício da liberdade de imprensa (invocado pela CMTV) poderia ser alcançado apenas “com o acesso à informação dos autos e seu relato circunstanciado”, concluiu que não valia a pena o inquérito.
A justificação do arquivamento foi a “jurisprudência maioritária”, considerando-se inútil “conduzir um processo por conduta de desvirtuamento da legalidade.” Traduzindo: os tribunais tendem a considerar que a liberdade de expressão/imprensa tudo justifica.
A CMTV difundiu vídeos dos interrogatórios de Miguel Macedo e de Jarmela Palos. O primeiro caso vai a julgamento, o segundo é arquivado.
Palos também apresentou queixa na Entidade Reguladora para a Comunicação Social, na qual afirmou que “a divulgação pública e generalizada do interrogatório” a que foi sujeito enquanto arguido teve “um único e hediondo objetivo – julgamento na praça pública”. Diz ainda que não só ele próprio, “mas também a sua família, foram alvo com esta demonstração de voyeurismo” e que só compreende esta conduta como “um ato destinado a descredibilizar e humilhar o queixoso, sujeitando-o a um espetáculo desumano”. Mas a ERC limitou-se a intimar o canal a não repetir a ação.
Alfredo Castanheira das Neves, advogado de Miguel Macedo e membro do Conselho Superior do Ministério Público, não quis tecer considerações em relação à decisão do Tribunal de Instrução Criminal sobre a queixa do seu cliente. Mas considera que o MP “pode e deve desencadear os meios legalmente disponíveis para impedir a reprodução de diligências processuais de processos que ainda estão na fase de inquérito, que é por natureza secreta [caso do processo sobre o homicídio de Luís Grilo].”
“O MP pode e deve desencadear os meios legalmente disponíveis para impedir a reprodução de diligências processuais de processos que ainda estão na fase de inquérito, que é por natureza secreta [caso do processo sobre o homicídio de Luís Grilo].”
O causídico, que era presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados quando estalou a controvérsia sobre o programa da SIC SuperNanny e defendeu que o MP deveria fazer o que estivesse ao seu alcance para obviar à transmissão do programa, lembra que nesse caso a PGR desencadeou um procedimento urgente – uma ação de tutela dos direitos de personalidade – na qual solicitava ao tribunal que ou obrigasse a SIC a tapar a cara dos intervenientes no programa ou impedisse a sua transmissão. Foi igualmente solicitado que qualquer conteúdo dos programas já exibidos fosse “retirado ou bloqueado”.
A estação, recorde-se, desistiu de transmitir o programa.