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Hugo Séneca: “Bem sei que não és juiz, J. Marques, mas uma coisa te garanto: também não és Julian Assange”

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Francisco J. Marques, os teus e-mails são meus

Como não sou exibicionista, vou poupar pormenores sobre aquilo que se pode encontrar na minha caixa de e-mail profissional:

– Alguns e-mails de pessoas que me deram informação sob anonimato;

– Um ou outro secretário de estado; e penso que até um ministro antes de o ser;

– Pouco mais de uma dezena de mensagens onde descomponho alguém que me pareceu incompetente na hora de me dar informação e um pouco mais de uma dezena de e-mails em que essas pessoas justamente me retribuem na mesma moeda;

– Alguns poemas ridículos que me hão de envergonhar até ao último torrão de terra cair sobre o meu caixão;

– Cartas para os meus filhos e para a mãe dos meus filhos;

– Confirmações de serviços online relacionados com o fornecimento luz, gás e sei lá que mais;

– Cópias de comprovativos de morada, transações, números de contribuinte e cartão de cidadão que enviei no passado para alguém que agora não interessa mencionar;

– Um número indeterminado de piadas enviadas por amigos ou colegas de redação – algumas dessas piadas são escabrosas e têm palavrões;

– Um ou outro e-mail com uma foto de uma miúda que notoriamente só se tornou motivo de interesse pela sensibilidade, a delicadeza, a profundidade intelectual, a simpatia e o arrojo artístico;

– Várias mensagens em que critico e/ou insulto o governo, a oposição, o Isaltino e o Medina, colegas de profissão, uma pessoa que me desiludiu, chefes, a concorrência, o capitalismo selvagem e até a humanidade em geral;

– Incontáveis e-mails em que proponho reportagens, procuro notícias, tiro dúvidas, pergunto por nomes mal redigidos, troco imagens e cumprimentos;

– Um número indeterminado de convites para almoço de trabalho que em 90% dos casos não aceito;

– Um número indeterminado de convites para jantar que enviei no passado e que, invariavelmente, me são devolvidos com respostas negativas das destinatárias. Minto: num ou noutro caso não houve sequer resposta; e uma das interlocutoras chegou mesmo a responder: «ahahahaha, a sério?»

– Dezenas de milhares de comunicados e sei lá quantas tentativas de me convencer a escrever sobre alguma coisa – tudo com contactos pessoais e moradas bem legíveis

– Um chorrilho de coisas que as pessoas que têm família, amigos, inimigos, colegas, entrevistados, tempos de lazer, obrigações e trabalho costumam ter na caixa de correio eletrónico;

Terminada esta descrição resumida, é chegada a hora de invocar o homem a quem dou honra de título nesta crónica para lhe colocar uma questão: Francisco J. Marques, achas mesmo que tens o direito, a legitimidade, ou apenas a moralidade para usar a minha caixa de correio electrónico, e desatar a ler os meus e-mails num programa de TV?

A sério?
Então por que não fazes o mesmo com a tua caixa de correio electrónico?

Fico a aguardar pela resposta, mas digo-te já: enquanto não disponibilizares a tua caixa de correio electrónico – e do plantel, equipa técnica e administração do FC Porto, por que não? – para bodo da populaça num canal de TV, nunca vou acreditar que realmente achas que aquelas descrições de e-mails de dirigentes do Benfica, possivelmente obtidas após intrusão informática, são legais e merecem uma ida ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Mas antes de tomares uma decisão mais drástica quero explicar-te uma coisa e fazer uma declaração de interesses, porque sei que estou a falar com alguém do futebol e tenho de eliminar à nascença o argumento obtuso do “só dizes isso porque és do clube x ou y”: eu sou do Sporting. Quase maluquinho, admito, mas não sou parvo. Acho que o FCP vai mesmo ganhar esta noite e é a equipa que joga melhor no campeonato. E também não sou parvo para achar que a rivalidade futebolística chega para suprimir liberdades e garantias de um cidadão, seja ele do Benfica, do Sporting ou do Alguidares de Baixo.

Por isso, era bem capaz de fazer este mesmo texto com o nome do teus congéneres do Sporting ou do Benfica, se um desses senhores tivesse o desplante de anunciar que iria ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos queixar-se de que a justiça portuguesa aceitou, em segunda instância, uma providência cautelar interposta por outro clube para impedir os programas semanais com a revelação de correspondência alheia. (Eu sei que é um aparte escusado, mas nunca percebi por que é que não fazem o programa junto a uma lareira para dar uma aura mais intimista. É apenas uma sugestão…).

Antes de comprares os bilhetes para Estrasburgo, peço-te que atentes nas seguintes frases: «Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à protecção da lei»

Este excerto consta na Carta Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, quando a GESTAPO já se finara, mas a STASI, a KGB e a CIA trocavam galhardetes e espiões e a PIDE passeava-se sorridente sem receber insultos dos transeuntes. Sim, há uma discrepância entre serviços secretos que se intrometem em tudo e as garantias previstas com a aprovação da Carta Universal dos Direitos Humanos, mas basicamente o princípio sobreviveu até aos dias de hoje – ao contrário da PIDE e da STASI.

Sou um sonnhador, mas quero acreditar que, se foi assim, é porque o princípio da inviolabilidade da correspondência é um direito humano importante numa democracia.

É de resto a importância desse mesmo princípio que leva a crer que, no passado, um qualquer jurista verteu para a nossa legislação os seguintes artigos:

«Artigo 193.º
Devassa por meio de informática

1 – Quem criar, mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, religiosas ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou a origem étnica, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

2 – A tentativa é punível.

Artigo 194.º
Violação de correspondência ou de telecomunicações

1 – Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido, ou tomar conhecimento, por processos técnicos, do seu conteúdo, ou impedir, por qualquer modo, que seja recebido pelo destinatário, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.

2 – Na mesma pena incorre quem, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicação ou dele tomar conhecimento.

3 – Quem, sem consentimento, divulgar o conteúdo de cartas, encomendas, escritos fechados, ou telecomunicações a que se referem os números anteriores, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias».

Os dois artigos estão presentes no decreto-lei 48/95 que está atualmente em vigor. Diria que estas frases seriam suficientes para qualquer juiz te impedir, caro J. Marques, de publicar os e-mails do rival do teu clube, mas a verdade é que houve um juiz de primeira instância que considerou que terias legitimidade para divulgar correspondência privada de outra pessoa, através de um canal de TV liderado pelo FC Porto, cujo estatuto editorial desconheço.

Talvez as leis que transcrevi aparentem apenas estar em português, quando eventualmente estarão num jurisdiquês que eu não entendo; ou o juiz de primeira instância tenha indeferido a providência cautelar interposta pelo Benfica por ter sido usado o ridículo argumento de concorrência desleal, quando o que estava em causa eram direitos fundamentais de pessoas (acredita, J. Marques, os benfiquistas também são pessoas, tal como os portistas ou qualquer adepto de outro clube).

Claro que poderias alegar o interesse público desta divulgação. Só que há um pormenor insuperável: tu não és jornalista, Francisco J. Marques (já foste, e dos bons, mas agora não és, lamento). Além disso, as passagens dos e-mails que costumas ler não são sujeitas a contraditório – e ninguém garante que não são extraídas sem contexto. Até posso admitir que aquela informação possa ter indícios de corrupção, mas acho que só um magistrado pode fazer esse juízo. Também podes argumentar que há treinadores e jogadores de equipas rivais que são obrigados a responder aos flash interviews dos jornalistas da Benfica TV, e até podes questionar o facto de haver profissionais da Benfica TV com carteira profissional de jornalista – e, nesses casos, concordarei contigo. Trabalhar numa TV de um clube deveria ser motivo suficiente para a entrega da carteira de jornalista – mas não nos vamos afastar do tema da privacidade, que não é a Benfica TV que está em causa neste texto.
(…)
Presumo que até um defensor da liberdade de expressão, como tu, sabe disto, mas de qualquer modo aproveito para relembrar: é por uma questão de sanidade democrática, social e política que a lei nacional exige que buscas e escutas sejam feitas a preceito e precedidas por mandado de juiz – e não possam derivar apenas de um link qualquer que se encontra no Facebook depois de um qualquer hacker colocar na Net todo os GB dos e-mails da Direcção do Benfica.

Também podes argumentar que há jurisprudência de 2013 que não penaliza quem descarrega ficheiros privados em links públicos – mas basta ler notícias que dão conta do bloqueio de sites que disseminam imagens de pessoas abusadas ou de jovens que se suicidam depois de situações bullying para perceber que esta jurisprudência tem mais buracos que a rede de uma baliza. E dificilmente pode ser levada a sério: até porque se eu me apoderar de uma carta alheia que os correios me entreguem posso estar a cometer um ilícito e eventualmente acontecerá o mesmo se colocar uma tabuleta na rua a dizer «venha aqui ver os e-mails impressos do Benfica».

Por que é que ter um link que direciona para uma violação de correspondência ou descarregar essa correspondência não foi considerado crime ou ilícito pela tal decisão de um juiz português em 2013 é algo que me escapa, confesso. Ok, é sempre possível dizer que, na Internet, são tantos os downloads e olhos indiscretos que se torna impossível punir os infratores. E eu respondo: acontece o mesmo com as beatas dos cigarros e não passa pela cabeça de ninguém legalizar o lançamento da beata, pois não? E acrescento ainda: hoje temos um memorando de entendimento para o bloqueio de música pirata, mas a lei não proíbe o acesso e a promoção da divulgação da correspondência privada?!

Bem sei que não és juiz, J. Marques, mas uma coisa te garanto: também não és Julian Assange. Bem sei que, à semelhança do líder do Wikileaks, sentes a tentação de publicar o que alguém esconde. Mas olha bem: Assange e Wikileaks; J. Marques e Porto Canal. Vês semelhanças?

Vejo muito poucas similaridades para lá do ato de denúncia pública, mas compreendo qualquer confusão que surja dessa comparação: tornou-se muito fácil alguém arvorar-se num Assange com propósitos que tanto podem ser justiceiros, bem-intencionados, melífluos, psicopatas, ou pueris. E também é possível que, um dia não muito remoto, proliferem mini-assanges de algibeira pelo mundo fora que publicam a correspondência do presidente da câmara que chumbou o candidato de emprego, do diretor de empresa que é um chato, do dono do café só porque tem piada, ou a até as resmas de cartas trocadas pela miúda gira do 3º esquerdo depois de ter acabado o namoro com o estroina da rua de baixo.

Não sei se algum juiz também vai considerar estas divulgações válidas e legítimas, mas não tenho dúvidas de que estas iniciativas têm audiência garantida – haja hackers para fazer as intrusões e gente abnegada para dar a informação ao público. Pelo que peço-te só mais um favor: vai quanto antes a Estrasburgo e apresenta a tal queixa a favor da liberdade de divulgação da correspondência alheia. É que já é hora de a justiça portuguesa deixar de ser gozada pelas pessoas do futebol.

Hugo Séneca

http://leitor.exameinformatica.pt/#library/exameinformatica/02-03-2018/edicao-54/opiniao/francisco-j-marques-os-teus-e-

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