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Rui Patrício: “São só mais uns pozinhos, e tudo se beatifica com a estúpida teoria do bom selvagem que salva a humanidade”

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Comecemos este texto com aquela expressão que os juristas usam amiúde, quando vão discordar de alguém, sobretudo se o fazem com dureza: salvo o devido respeito. Ora, salvo o devido respeito, tenho assistido com um misto de asco e de riso (mas amargo) a uma certa discussão que vai por esse mundo fora sobre a suposta bondade de certos atos criminosos de pirataria informática. Vários crimes graves, afinal, ao que parece, não só não o seriam, como fariam até o autor ou autores arriscarem a beatificação social, porque com eles o que fizeram mais não foi do que denunciar o mal e contribuir para a transparência. E pronto, já está, não é preciso aprofundar, nem discutir mais, nem pensar. Narrativa feita, narrativa difundida, narrativa arrematada. Para quando a santidade?

Ora, isto é – salvo o devido respeito, claro – superficial, distorcido e até um pouco estúpido, sendo também, e sobretudo, muito perigoso. Mas soa bem, e vende ainda melhor, combinação perfeita para fazer vingar narrativas. Aos autores dos crimes e aos seus familiares, não posso levar a mal a teoria, claro, por razões compreensíveis, e aos seus advogados também não, porque fazem o seu dever, embora possa ter as minhas opiniões (intelectuais, digamos) sobre a linha de defesa. Mas a todos os outros já levo um bocadinho a mal – apenas intelectualmente, claro, e salvo sempre o devido respeito – a superficialidade e et cetera da análise nestes termos.

Isto de justificar ou desculpar crimes em função de interesses ditos superiores tem muito que se lhe diga, e vem nos livros, logo aliás nos mais simples sobre a chamada teoria do crime (aqueles que qualquer um deveria ler ou reler, antes de se abalançar a doutrinar a população). Não é assim de qualquer maneira, para qualquer coisa, e com duas pinceladas e já está. Trata-se, em primeiro lugar, de situações excecionais, e extremas. Em segundo, os interesses têm que ser mesmo superiores, em si mesmos, e aos que se colocam em causa com os crimes praticados. Depois, terceiro, tem que haver mesmo necessidade, estrita adequação e ponderada proporcionalidade. Quarto, cumpre encontrar boa-fé na coisa, já agora. E, quinto, sexto, e por aí fora, mais umas coisinhas de nada, mas importantes para se poder dizer que algo que é crime deixa de o ser ou que, sendo-o, não merece censura. Mas pronto, já são complicações, admito, rodriguinhos, miudezas, manias de jurista meticuloso. É muito mais simples e bonita a teoria acrítica da transparência e bem mais sedutor o mito do bom rapaz. Não é? Quem não gosta, com uma pitada de voyeurismo, e laivos de folhetim?

Mesmo que para aceitar a narrativa tenha que esquecer que, se calhar, os interesses não são assim tão superiores, que a conduta não é necessária, e que vai muito para lá da adequação. E esquecendo, além do mais, que se vende informação, ou se pede dinheiro por ela. Boa-fé, claro, princípios abnegados, mas já agora um dinheirito não caía mal. E espalhar revelações que não se relacionam com nenhuma denúncia relevante também fica bem, e ninguém se importa, são só mais uns pozinhos, e tudo se beatifica com a estúpida (mas vendável a metro e barata) teoria do bom selvagem que salva a humanidade da opacidade e do obscurantismo. E por aí adiante. Pouco importa, são detalhes, coisas de jurista. Não querem pensar nisso, pois não?
E no perigo da teoria, querem pensar? É que ela mais não é do que uma versão ligeira da estafada, mas rendível, ideia de que fins aparentemente bons justificam os meios, quaisquer meios mesmo. Há transparência a conseguir, e as autoridades e os meios legais não vão lá ou não vão lá como se quereria? Então pronto, pirataria informática, e já está. E quem diz pirataria informática, diz escutas telefónicas, buscas domiciliárias, revistas, exames, e por aí adiante. Bem visto, bela ideia, vamos entregar isso a bons rapazes que por aí andem disponíveis para se entreter com estas coisas. Não? Mas porquê? O princípio não é o mesmo? Os fins não são bons? Não vale tudo?

E umas milícias privadas para fazer justiça nas ruas também ia bem, não acham? A justiça é o que é, já se sabe, lenta e injusta, tanta malandragem que por aí anda à solta, não seria melhor limpar as ruas? Parece que sim, vamos nisso. Há de haver algum cultor da transparência e dos bons modos sociais disponível, mesmo que tenha que ser remunerado – de boa vontade ou mediante extorsão, não importa, o que interessa são as altas finalidades e os benignos propósitos. E uma torturazinha aqui e ali, para arrancar confissões aos criminosos, esses impenitentes cheios de garantias nos processos, que duram e duram e às vezes acabam em nada? Também não seria mal visto, e convido os cultores destas teorias a elaborarem sobre o tema. E, finalmente, se gostarem mesmo de coisas radicais, poderiam emprestar uns pozinhos desta doutrina a Hannibal Lecter, o qual, afinal, era um bom e bem-intencionado homem, que verdadeiramente só queria erradicar os maus da Terra. E, já agora, supremo gesto louvável, comê-los, para não desperdiçar proteínas.

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