“Sabes que o Benfica tem este lado de ter povo”
Interligados pelo emblema, pela história gloriosa e pela Mística do Sport Lisboa e Benfica, Carlos Manuel, um dos ícones das águias de 1979 a 1987, e João Mário, um dos capitães de equipa na atualidade, são protagonistas de uma entrevista para os meios do Clube que é muito mais do que isso. Momentos de partilha e de simbiose entre dois homens do meio-campo, de diferentes tempos, com os valores do Glorioso sempre presentes.
Como se vive num balneário como o do Benfica? E com os valores do Benfica? São questões subjacentes ao fio de uma meada desfiada por quem trata o futebol por tu, no decurso de uma conversa intimista, em que são abordadas as ambições do Benfica para a temporada 2024/25, as quais se mantêm época após época. “Todos os anos somos candidatos a tudo, e só há uma mentalidade, que é vencer, vencer, vencer, porque é uma obrigação“, garantiu João Mário.
A relação com o treinador Roger Schmidt e a ideia de jogo que defende são objeto de elogios por parte de João Mário, que, no seio de um “plantel jovem e com muita qualidade“, pretende assumir-se como “uma referência positiva e madura”.
A Mística, como um conjunto de valores indissociáveis do Clube, e a forma como a mesma é transmitida – processo em que o Presidente Rui Costa é “o símbolo maior presente no dia a dia no Benfica” –, é igualmente objeto central de um diálogo revelador.
Carlos Manuel: Andamos aqui há uns aninhos, eu há mais do que tu…
João Mário: Verdade.
CM: E não há nada melhor do que começarmos com aquela frase que está ali escrita na parede, que é “O talento vence jogos, mas o trabalho de equipa e a inteligência ganham campeonatos”. O que é que tu dizes a esta frase?
JM: Não poderia estar mais de acordo. Isto é uma máxima, para mim, no futebol. Quem joga em equipas que têm sempre a ambição de ganhar títulos, como é o nosso caso, só se consegue com o coletivo. Temos sempre grandes individualidades no plantel, mas só isso não chega. A equipa é que faz toda a diferença, e é algo que é cultivado.
CM: O talento aparece quando o coletivo é melhor.
JM: Exatamente.
CM: Sem dúvida nenhuma. Já no meu tempo era assim [risos]. As coisas continuam iguais. Olha, só o facto de estarmos aqui neste espaço, que normalmente é a nossa segunda casa – só que os tempos agora são outros… Como é que se vive no balneário do Benfica?
JM: Muito bem, o ambiente é muito saudável. Já o era no ano passado. Tentamos sempre adaptar bem os novos jogadores. É um plantel bastante jovem neste ano, é uma certeza, mas, quando trabalhas com tanta qualidade e com pessoas que estão sempre dispostas a ajudar o Benfica, fica mais fácil para todos. O nosso plantel neste ano, apesar de jovem, e por aquilo que tenho visto nos treinos nesta fase inicial, é um plantel com muita qualidade.
Carlos Manuel: Sabes, quando eu cheguei ao Benfica, este espaço foi não só a minha segunda casa, mas também a casa que quase me deu tudo. Eu vinha de um ‘empregozinho’ na CP, a trabalhar, a estudar à noite, a jogar no Barreirense, e a minha vida social mudou completamente quando cheguei a este espaço. A mim, diz-me muito pelo valor, essencialmente, que todos aqueles grandes jogadores que o Benfica teve na minha altura – mais a mais aqueles mais antigos, os Tonis, os Humbertos, os Nenés, os Shéus, os Pietras, os Bentos – me deram, não do futebol, mas tudo o que é mais íntimo. Foi a minha vida. Por isso é que o balneário é forte.
João Mário: É impagável. Muitas vezes isto é o que fica, porque realmente é onde temos os momentos de maior intimidade com os nossos colegas, amigos. Passamos muito mais tempo aqui todos juntos do que com as nossas famílias. Obviamente que deixaste de jogar e tens saudades do campo, mas também tens muita saudade deste espaço aqui…
CM: Tenho saudades do chuveiro [risos], a cair aqui em cima…
JM: Tudo o que é este espaço acho que é único, porque toda a gente vê o dia do jogo, mas nem toda a gente tem o privilégio de estar aqui, dividir o espaço com pessoas com quem te identificas muito, com quem passas muito tempo. Sem dúvida que isto é o que fica.
CM: É uma grande verdade. E de que forma é que está a correr esta pré-época?
JM: A pré-época é sempre muito exigente. É uma altura em que temos de trabalhar muito a questão física. Temos grandes ambições para este ano, estamos a trabalhar no máximo. Sinto um grupo saudável, que acho que é o mais importante para começar a construir as bases para este ano. Sinto um grupo com muita vontade de ganhar títulos neste ano e tenho a certeza de que este grupo estará muito bem.
CM: Diz-me uma coisa: como é que é o Roger Schmidt, como treinador e como pessoa? Eu sei que para nós, enquanto jogadores, temos sempre alguma dificuldade em falar nestas situações porque depois chegamos ao balneário e já sabemos como é… “Puxa-saco”, na brincadeira. E às vezes evitamos alguma coisa… Mas essencialmente é falar a verdade e o que se sente pela pessoa.
JM: No caso do míster, o maior elogio que pode ser feito é que é unânime. Podes falar com qualquer pessoa dentro do Seixal, que ela vai dizer-te a mesma coisa – é que, a nível humano, é uma pessoa espetacular. É daquelas pessoas que transmitem sempre muito boa energia, é muito positivo, e isso faz muita diferença para nós no dia a dia. E, a nível de treinador, as ideias de jogo dele são muito claras. É algo com que toda a gente se identifica um pouco, porque tu queres sempre dominar os jogos, queres sempre jogar de pressão, queres sempre fazer golos o mais rápido possível, e essa é a ideia claramente que ele, em todos os treinos, nos transmite. Eu, pessoalmente, gosto muito da ideia de jogo dele, e acho que todo o Clube em si gosta, porque o Benfica vive muito disto, de golos, de jogar bem, de vitórias.
CM: De jogar bem essencialmente também…
JM: Já não bastam só vitórias, temos de jogar bem também. Acho que temos cultivado isso, pouco a pouco, e tem começado bem.
CM: Não conheço como tu conheces o Roger [Schmidt] como é óbvio, mas sabes que nós temos algumas perceções, mesmo nos próprios jogos, não vejo os treinos, mas nos jogos tenho a perceção – porque joguei… No semblante do treinador, no semblante do jogador, sempre o que me apercebi é que o relacionamento entre o Roger [Schmidt] e a equipa, digo o plantel todo, era ótimo. Isso foi sempre o que me apercebi. Mesmo nas viagens que fizemos ao estrangeiro, foi sempre o que me apercebi.
JM: Existe grande respeito para com ele, exatamente pelo que eu disse, a maneira como ele nos trata no dia a dia, como nos transmite essa boa energia e essa confiança. Faz toda a diferença – com alguém com quem tu passas tanto tempo, que tem de tomar decisões muitas vezes difíceis para com o grupo – para que haja sempre um ambiente saudável e que nos permita dar o nosso máximo, sempre respeitando aquilo que são as suas decisões. Mas por ele ter essa tranquilidade, mesmo durante os jogos, não é um treinador que vais ver sempre de braços abertos a reclamar. Ele não tem essas características, é uma pessoa muito calma, e depois também acaba por transmitir isso à equipa.
CM: Isso é bom, e ainda bem. De jogador para jogador agora, de que forma é que podes fazer a diferença no estilo de jogo do Benfica?
JM: Nunca gostamos muito de falar de nós, mas acima de tudo, também vendo um pouco agora como o plantel está, muita malta jovem, tento sempre ser uma referência, madura neste caso. Independentemente da posição, da dinâmica, tudo, o que tento é sempre puxar as minhas qualidades individuais para aquilo que é a ideia do míster, e conheço bem as ideias, já trabalhamos juntos há algum tempo. Vendo muito este plantel e a maneira como está a ser construído, é tentar sempre ser uma referência positiva e madura no seio.
CM: Com que mentalidade é que se entra nesta nova época?
JM: Só pode ser uma, porque jogamos sempre para competir. Todos os anos somos candidatos a tudo, e só há uma mentalidade, que é vencer, vencer, vencer, porque é uma obrigação. Aprendemos com o ano passado que não chega jogar bem, não chega ganhar uma vez, não chega ganhar a Supertaça, tens de ganhar e competir sempre até ao final.
Carlos Manuel: Para os jogadores que chegam, de que forma é que se passa a Mística, a cultura do próprio Benfica, a importância dos adeptos? No fundo, é a história do Benfica e o que é ser benfiquista… Em relação à importância dos adeptos, no meu tempo era assim, e hoje ainda existe… Sabes que o Benfica tem este lado de ter povo. O Benfica tem às vezes adeptos que têm grande dificuldade na própria vida em termos financeiros, mas pagam a sua quota. E por isso eu digo ao mais pequeno que é grande adepto do Benfica, nós temos de ter um respeito enorme porque as dificuldades existem e eles estão lá sempre a ajudar. Como é que se ensina isto a gente nova que chega?
JM: Uma das mensagens que tento sempre passar a quem chega é que a exigência é grande no Clube. Estamos a ganhar 1-0, os adeptos querem o 2-0; estamos a ganhar 2-0, querem o 3-0; ou seja, não se contentarem com o bom. Aqui, o bom não chega; no Estádio da Luz, o bom não chega. Então, convém que se vá passando uma mensagem a quem chega que temos de andar sempre no limite. Temos de ir além dos limites, porque o nosso adepto – seja qual ele for, porque tenho respeito por todos os adeptos, toda a gente na equipa tem esse respeito – é de exigência, então não adianta cultivarmos uma mensagem de que o bom chega. Não. Temos de estar próximos de valores excelentes, e essa é a mensagem que tento passar muito. Depois, também uma mensagem de união, porque sentimos que se estivermos todos juntos, os adeptos fazem muita diferença. E fazem mesmo, especialmente nos jogos em casa, mas nós jogamos quase sempre em casa. No ano passado tivemos a experiência de alguns jogos fora, até nas competições europeias, de não ter os adeptos, e sentimos essa falta. Portanto, todos juntos a remar para o mesmo lado será sempre mais fácil.
Carlos Manuel: Isso não começou agora… Já no meu tempo, a exigência que havia perante nós…. Passar a bola do meio-campo defensivo para o ofensivo, e se ela voltasse para o meio-campo defensivo já o Terceiro Anel assobiava. Mas isto era a responsabilidade natural que nos davam. O futebol mudou muito, é completamente diferente do meu tempo. Hoje vais à linha de fundo e não cruzas, a bola tem de rodar, às vezes até chega ao guarda-redes… Se fosse no meu tempo, até tínhamos de fugir do campo… As coisas são diferentes, mas a exigência estava lá.
João Mário: Estás a contar uma coisa que é atual. O futebol mudou, mas isso acontece nos nossos jogos em casa. Se está 3-0 ou 2-0 e fazemos um passe para trás, continuam a assobiar, porque é a responsabilidade, passam essa exigência para a equipa. Posso dar um exemplo claro: lembro-me que o primeiro feedback que tive de alguém das bancadas quando fiz o hat-trick com o Inter não foi “parabéns”, foi “vamos ao quarto”. Tinha feito um hat-trick na primeira parte e ninguém me disse “parabéns”, mas sim para ir para o quarto golo. Esta é a exigência do Benfica.
Carlos Manuel: Hoje, com as redes sociais, é completamente diferente. Antes, acabávamos o jogo, tínhamos os nossos carros fora das baias e estavam os adeptos à nossa espera, de vez em quando. Da mesma maneira, quando íamos para o treino no Campo n.º 3, os adeptos iam a falar connosco, ali perto. Mas isso era mais para nos fazerem sentir responsáveis, o que não é mau. Mas há aqui outra palavra: Mística. Tenho uma conceção muito, muito sui generis da Mística do Benfica, que é aquilo que vem mesmo no dicionário: é uma atitude coletiva e afetivamente assente na devoção ao clube. Estas duas palavras, afetividade e devoção, valem muito aqui. Acho que a Mística é isso. Claro que vamos falar, depois, da garra, do querer, da vontade, mas está inserido nisto.
João Mário: É uma palavra que está muito, muito, introduzida no Clube, que ouves muito desde os miúdos da Formação até à primeira equipa, e falamos muito disso. Já estou cá há algum tempo e já fui vendo o que é a Mística do Benfica, e sem dúvida que é uma palavra importante. Como disseste, e bem, pela definição, as pessoas gostam de uma equipa que coletivamente funciona. Falamos sempre em individualidades, o Benfica vai ter sempre grandes individualidades, e as pessoas vão gostar sempre. Mas é sempre difícil ganhar, porque aqui não basta ganhar um jogo, não basta ganhar 10 jogos, tens de ganhar o Campeonato, tens de lutar nas competições, ganhar as Taças. Não conheço nenhuma equipa que consiga esses objetivos sem ser um coletivo forte.
CM: O Clube tem um Presidente que encarna de uma maneira perfeita estes valores de que falámos, a Mística, a cultura do Clube, todos estes valores. Vocês sentem isso no dia a dia?
JM: Claramente… Se há alguém que nos identifica e nos transmite essa Mística é o Presidente, é o símbolo maior presente no nosso dia a dia no Benfica. Não só por ser Presidente, mas por ser quem é. Como também foi jogador, todo o feedback que nos dá é sempre no sentido de nos sensibilizar e fazer perceber o que é essa Mística.
CM: Eu conheci o Presidente quando devia ele ter 9 ou 10 anos. Sabes como?
JM: Não.
Carlos Manuel: É uma pequena história que te vou contar. Nós tínhamos um balneário que, quando saíamos para ir para o jogo, tinha um corredor grande até chegar ao túnel. Quando eu vou para um jogo internacional, para aquecer, ia eu e o Diamantino, vejo um miúdo encostado a uma parede, a chorar. E eu perguntei: “Estás a chorar? O que é que aconteceu?” [Resposta] “Eu cheguei atrasado para apanha-bolas, e o Zé Luís [que era o nosso roupeiro] não me quer dar o equipamento, porque cheguei atrasado, mas estou com um problema, porque o meu pai e a minha mãe é que me trouxeram, deixaram-me à entrada e foram para o Estádio. O Estádio está cheio, e eles não me vão ver lá dentro, vão ficar preocupados.” Isto já era a preocupação dele. Eu disse-lhe assim: “Espera aí, vamos ver o que conseguimos aqui.” Agarrei nele, cheguei ao Zé Luís – que tinha a alcunha de Marradinhas, de vez em quando estava ali amarrado – e eu disse: “Zé, dá aí o equipamento ao miúdo para apanhar bolas. Os pais estão lá, se não veem o miúdo, vão ficar preocupados.” Na altura, não havia telemóveis, era uma preocupação. E o Zé: “Não dou, chegou atrasado!” Eu: “Não dás, está bem. Dá-me aí o meu fato de treino, que eu vou aquecer com o fato de treino.” Ele deu-me o meu fato de treino, agarrei no miúdo, para o meu cacifo. Começou a despir-se, vesti-lhe o fato de treino, enrolámos tudo, era um saco de batatas, e, de mão dada, foi lá para dentro. Foi assim que eu conheci o nosso Presidente.
João Mário: História gira, há muitos anos…
Carlos Manuel: Muitos anos, estamos a falar para aí de 1981 ou 1982. Foi assim que conheci o nosso Presidente, mas isto é um aparte, que é uma história pela qual tenho um grande carinho, até porque era o Rui Costa, ainda por cima o jogador que foi. O sentimento que existe dentro do balneário… E isto porque, normalmente, do Presidente aos adeptos, há sempre uma coisa em mente, que é vencer. Dentro, também existe em relação a vocês?
JM: Claro que sim, isso é obrigatório neste clube. Qualquer pessoa que entre, que veja a qualidade que há no plantel, o feedback dos adeptos… Hoje em dia há redes sociais, há tudo e mais alguma coisa. A partir do momento em que um jogador assina pelo Benfica, já sabe automaticamente que vai lutar por tudo, então, de certa forma, fica fácil transmitir essa mensagem, porque toda a gente dentro do Clube, para os que chegam, diz: “Chegaste a um grande clube, as condições que tens são espetaculares, depende de nós.”
Carlos Manuel: Conhecemo-nos pouco os dois, como é óbvio. Conheço-te melhor eu a ti do que tu a mim, pelo menos no campo. Gostei muito de falar contigo. Acho que tens uma cabecinha espetacular. Na nossa gíria, não és marreta, e acho que o Clube precisa também de gente como tu, que ajude quem chega e quem está, nesse sentido. Todos nós vamos precisar disso. Obrigado, João.
João Mário: Muito obrigado, gostei muito desta conversa, e obrigado pelo golo à Alemanha também.
Carlos Manuel: Sabes que me enganei? Tenho esse direito.
João Mário: Já está na história. A história ninguém muda, ninguém apaga.
João Mário: Davas uma perninha no nosso sistema.
Carlos Manuel: Dava muito, porque eu era muito objetivo, não havia bola para trás.
João Mário: O míster gosta disso, jogo logo para a frente.
Carlos Manuel: Depois, tinha coisas, no passe longo era muito forte também, o remate fora da área, os meus golos foram quase todos de fora da área. Acho-te com muito mais técnica que eu, em termos técnicos és muito evoluído, tens bom passe, possivelmente até mais bonito a jogar, percebes? Sem dúvida nenhuma.