António Galamba: Rui Pinto e o Estado de delito
O sistema judicial comprovou o seu efetivo colapso. Quarenta e seis anos depois do fim do Estado Novo, recuperou o bufo como parte do processo.
Numa sociedade devem existir regras de funcionamento individual e comunitário aplicáveis a todos por igual, num quadro de direitos, liberdades e garantias. Para a observância das regras, além de um impulso cívico individual da participação na vida em sociedade, conta a existência de instituições que supostamente asseguram o cumprimento da aplicação e cominam a aplicação de sanções a quem não as cumpre, nos termos da lei.
Supõe-se que Portugal seja um Estado de direito democrático, em que todos são iguais perante a lei e o sistema judicial zela pela aplicação das regras pelos cidadãos e pela comunidade em geral. O sistema funciona mal, desde logo porque há um desfasamento entre o ritmo da justiça nas suas diversas dimensões e as dinâmicas dos indivíduos e das comunidades, por regra dentro da legalidade, mas não sempre – aliás, tal como o próprio funcionamento dos diversos órgãos e titulares da função judicial. Tal como na sociedade, há de tudo, e até os que se julgam acima da lei ou se permitem interpretações lesivas do Estado de direito.
O caso Rui Pinto é o paradigma de uma justiça incompetente, preguiçosa e em desvio para a consagração da máxima de que “os fins justificam todos os meios”, até mesmo condescender com o “criminoso” para superar as incapacidades de investigação. É público haver escutas telefónicas que são realizadas à margem da lei, sem a cobertura de um juiz, é notório haver processos judiciais em que a produção da prova ou o cumprimento das regras processuais são tão inconsistentes que deviam fazer corar de vergonha os intervenientes ou, diariamente, violações do segredo de justiça com fugas para a imprensa para a obtenção de determinados propósitos. O sistema está de tal forma deslaçado que a sociedade assiste, impávida e serena, a uma guerra mediática e judicial entre dois juízes, com trincheiras mediáticas de apoio a duas perspetivas diferentes de ver a justiça: uma, em que os fins justificam os meios, que agrada a determinada imprensa sensacionalista; a outra, em que as garantias previstas na lei são observadas. Neste bailado judicial e no branqueamento das ações criminosas de Rui Pinto à luz do Estado de direito democrático, há uma capitulação do Estado. O Estado declara-se incapaz de avaliar o cumprimento das normas que criou e valida o recurso a todos os meios, legais e ilegais, para obter determinados fins. É o Estado português, como os outros Estados-membros da União Europeia ou da comunidade internacional, que permite a existência de alçapões de fuga às obrigações fiscais e financeiras nacionais – apesar de em muitos casos, como é o da Holanda, depois se arvorarem em moralistas. Em vez de alterarem a legislação, para os habilitar a uma fiscalização mais consequente da realidade, recorrem a criminosos para obter o resultado do vasculho ilegal.
O curioso é que o mesmo Estado que resiste a que existam listas públicas de devedores às Finanças e à Segurança Social é o que condescende com um pirata informático na obtenção de informações obtidas de forma ilegal sobre fluxos financeiros. O mesmo Estado que não consegue cruzar dados entre diversas dimensões da vida individual e comunitária, por exemplo nas obrigações fiscais, com a Segurança Social e com outras entidades do Estado, permite que um indivíduo arvorado em justiceiro possa, de forma ilegal, proceder aos vasculhos e cruzamentos informáticos que lhe aprazem, de acordo com os seus critérios e opções próprias – vasculho o Benfica e o Sporting, preservo o FC Porto.
O sistema judicial comprovou o seu efetivo colapso. Quarenta e seis anos depois do fim do Estado Novo, recuperou o bufo como parte do processo. Não foi preciso o Chega ou André Ventura; o sistema judicial consagrou o “bufo informático”, resgatou um dos pilares do funcionamento do Estado de Salazar, agora com laivos de modernidade do vale-tudo. Agora como antes, dizem ser em nome da verdade. Agora como antes, isto é filho do arbítrio, do desmando e dos fins que fundam todos os meios. Não será de estranhar que se assista à comoção eufórica da libertação do criminoso por parte do universo do FC Porto ou de advogados internacionais que, noutros planos, são defensores de Platini na acusação de corrupção na atribuição do Mundial 2022 ao Catar e do Euro de França de 2016. Afinal, isto sempre esteve e está tudo ligado.
A questão central é se devemos permitir que se consagre uma sociedade de vale-tudo, sem regras do conhecimento de todos, em que os fins justificam todos os meios. Se queremos ser condescendentes com o ciberterrorismo, que é assumido na ação por diversos Estados ou que é assumido em diversos impulsos de boicote ao funcionamento da sociedade, como aconteceu há pouco tempo com ataques ao Serviço Nacional de Saúde e tantas outras entidades. É que a diferença entre isso e o voyeurismo das vizinhas ou dos invejosos é inexistente. Com que legitimidade, depois de branquear Rui Pinto, se poderá impedir que o funcionário bancário deite um olho na conta daquela figura pública ou do vizinho do 2.o esquerdo, sobre o qual recai alguma suspeita pessoal que importa investigar? Que o funcionário do fisco aceda à situação fiscal do primo que teima em impedir as partilhas ou que a funcionária da Segurança Social aceda à base de dados para tirar a limpo se cumpre as obrigações face aos sinais exteriores de qualidade de vida da cabeleireira do bairro?
Rui Pinto transforma o Estado de direito democrático num Estado de delito, em que os fins justificam todos os meios. Se é para ser assim, consagre-se a devassa, a ausência de direitos, liberdades e garantias. Já que se levam aos poucos os pilares do Estado de direito, muitos por incompetência, preguiça ou desfasamento do sistema judicial, levem o resto.
Por mim, não ao vale-tudo. Se as regras não servem, alterem-se as regras, não se idolatrizem os criminosos só porque são mais eficazes a verificar as eventuais falhas do Estado de direito.
Notas finais:
E os jornalistas avençados do BES? O ridículo não mata em Portugal, mas tria em muitos pontos do mundo. Pedro Santos Guerreiro, jornalista ex-diretor do Expresso, exultou com a libertação de Rui Pinto. Não exultou nos últimos quatro anos com a libertação dos nomes dos jornalistas avençados pelo saco azul do GES; pode ser que seja para a semana. Isso sim, era sanitário para o jornalismo.